Crédito: Frame/Reprodução
Texto de um corinthiano. Agradecemos a colaboração.
“VAR com Deus. E não volte.
“O afeto ou o ódio mudam a face da justiça.” (Blaise Pascal, séc. XVII) “Nem sempre será justo. Futebol tem dessas coisas. Por isso é tão lindo.” (Jorge Sampaoli, 2019)
O futebol tem seus primeiros relatos na Itália, em Florença. Um esporte que podia ser jogado com os pés e com as mãos, e os pontos eram feitos nas extremidades demarcadas. Uma Florença Renascentista, em um período de ascensão e valorização do homem individualista. Paradoxalmente ao individualismo, pratica-se um esporte coletivo. Mas nem tão incongruente assim. Embora haja um objetivo comum, são 22 homens com suas singularidades acentuadas.
Nas faculdades inglesas o esporte foi moldado, e mais do que qualquer outro, se adapta aos povos, às classes, às tribos, aos solos. Do erudito ao popular, há futebol nos mais belos campos e parques, assim como em ruas de pedra, à beira do rio, na areia da praia, no asfalto das cidades, na cerâmica de casa. Com bolas cheias de tecnologia de peso e velocidade ou com latas de refrigerante. Tudo vira futebol.
E o que explica tanto sucesso? A resposta é mais simples do que se imagina: o ser humano é apaixonado por surpresas.
Não há lógica dos pés serem a principal ferramenta em um esporte. Mal se consegue ter independência nos dedos! É a festa da imprecisão. Há de se desenvolver habilidades antinaturais para executar movimentos com virtuosidade. Por mais que seja possível presenciar apresentações harmônicas, é uma orquestra de músicos descompassados, em movimentos corporais completamente distintos entre si, cada um com um nível de habilidade particular, o que aumenta a probabilidade do improvável.
Qual outro esporte coletivo permite que jogadores de baixa estatura e franzinos se destaquem? O futebol propicia exibições solos fantásticas em meio a coletividade, que nenhum outro proporciona. É surpreendente – e apaixonante! – ver o Golias da força e imposição física ser vencido pelo Davi ágil e habilidoso. Sem deixar de ser belo quando Davi é superado. O mais forte nem sempre vence. O mais fraco nem sempre perde. Simplesmente porque não há como medir precoce e precisamente quem está de qual lado.
Há regras precisas. 17. Todos as conhecem. Por interesse ou por osmose. Algumas delas podem ser suprimidas (ou levemente modificadas) na recreação, sem perder a essência do jogo.
A torcida é compartimento fundamental na construção do cenário perfeito. Uma fusão de emoções ora trazida do campo para a arquibancada, ora da arquibancada para o campo. Não há lógica, como em quase tudo nesse esporte, para a sintonia. Até a frustração é compartilhada. E a emoção dividida em abraços desconhecidos. Tudo em fração de segundos. Pela bola que raspou a trave, que o goleiro tirou com a pontinha dos dedos, ou pelo gol chorado que bateu em todo mundo. A tensão de ver um jogador do seu time expulso, e 10 lutarem como 11 e contra 11, ou a vibração de ver o adversário fragilizado por perder um dos seus.
O jogo nunca acaba. O erro humano sempre fez parte do jogo. Seja dos jogadores ou de quem apita. E só por isso algum time vence. A discussão vai perdurar dias, semanas. O vencedor vai rir, o perdedor vai reclamar. Dias depois o perdedor vencerá. Será ajudado por um erro. Do adversário, ou do árbitro. O jogo nunca acaba mesmo!
Quanto mais presença das características humanas, mais apaixonante fica. Todo mundo erra, acerta, mente, é justo, é injusto, tem dias bons, tem dias ruins, faz coisas incríveis, tem atitudes repreensíveis, vence, perde, chora e ri. Naturalmente, por ser humanizado, o futebol, redundantemente, se aproxima da humanidade. Por gerações.
Tudo é muito simples e acessível.
Era.
De repente se criou a necessidade da ausência de erros. Da tecnologia a qualquer custo. Da chamada “justiça” no futebol.
O jogo perdeu a espontaneidade. A torcida só ri ou chora após o apito final. Durante 90min está engessada. O que aconteceu no campo terá que esperar 1, 2, 10 minutos para ser confirmado. Não abrace ninguém quando aquele gol improvável sair quase do meio-campo. Alguém de 1,68m, 67kg, pode resvalar em um zagueiro de 1,92m e 90kg, e ele cair fora do lance. Cinco minutos depois, quem comanda a tecnologia anulará. A euforia, a confiança no título, a conexão inexplicável entre time e torcida, será brutalmente cortada. Toda aquela adrenalina vai baixar. A injeção de ânimo se transformará em decepção. A confiança será abalada. Não haverá mais forças para se reerguer diante do desgosto.
O jogo que nunca acabava, agora, muitas vezes, acaba antes do apito final. E o pior: sem justiça alguma. O erro que não interrompia a paixão de ninguém pelo esporte, apesar da raiva momentânea, agora está respaldado. Outrora nas mãos do acaso, agora está nas mãos da incompetência. E a incompetência mata a poesia. O improficiente do apito era apenas um jovem rebelde fazendo travessuras, todos relevavam. Agora se torna um serial killer de emoções. Não há tecnologia que corrija a capacidade humana de errar, rever e errar novamente. Ou pior: acertar, rever e retificar com um erro. Intolerável.
A imposição da aclamada justiça se torna um crime psicológico por meios cruéis. Se o VAR veio para ficar, a paixão está prestes a definhar. Não há justificativa plausível para a robotização do amor. E o futebol é a maior expressão do imponderável.
Ou era.”
[Daniel Brito]
Daniel Brito, maranhense, tinha duas chances de conhecer e ser conhecido além do que chama de “esquina do fim do mundo”: ser jornalista ou jogador. Da primeira, desistiu. Da segunda, teve que parar cedo demais. Coube ao Corinthians fazer a conexão com o resto do mundo e com tanta gente incrível.
Twitter @danielbritoo