O que podemos falar de gigantes da vida, de pessoas que simplesmente fazem de sua luta diária contra adversidades inimagináveis um combustível de altíssima octanagem para motivar e iluminar o caminho de outras pessoas, inclusive de desconhecidos? Assim era Ronald dos Santos Trindade, ou como era mais conhecido, o Ronald Capita
Foi por causa de sua curiosidade e de sua incapacidade de parar quieto que conheci o Ronald, há alguns anos. Em um determinado dia de outubro ou do início de novembro de 2014, não sei ao certo, ao acessar meu Twitter, me deparei com uma mensagem de um garoto adolescente, cadeirante, corinthiano fanático e que, por algum motivo (não, eu não acredito em coincidências), se deparou com um tweet meu e resolver olhar o que estava escrito em minha bio. E lá, ele leu que eu sou cartunista. Não de profissão, mas por hobby. E o tal garoto inquieto resolveu enviar-me uma mensagem solicitando que eu fizesse uma charge dele.
Na época, eu estava com meu tempo totalmente envolvido em montar uma empresa com um amigo. Quase não tinha tempo para nada, e ainda por cima, fazia muitos anos que eu sequer rabiscava uma casinha num papel de pão. Lembro que eu respondi a mensagem de um jeito meio lacônico. “Tomara que ele desista da ideia”, eu pensava. Perguntei do que ele gostava e como ele imaginava essa charge. Para minha surpresa, ele estava online e me respondeu. Contou um pouco de sua história e de tudo o que curtia. Eu nunca iria esperar que dessa conversa surgisse uma amizade tão verdadeira. Aliás, mais do que uma amizade, pois para mim, Ronald é um irmão e um ídolo.
As semanas se passaram desde que aquele pedido do Ronald chegou em meu Twitter. Eu às vezes me lembrava, mas confesso que as obrigações do dia a dia me fizeram colocar para segundo plano o trabalho da caricatura. Porém, do nada, algumas vezes eu sentia que algo me lembrava daquele pedido, e junto vinha uma sensação de que eu precisava torná-lo realidade. Era uma sensação de que se eu fizesse, algo realmente muito bom eu ganharia. Talvez fosse a chama que me fizesse tirar do papel a minha “turma” de história em quadrinhos (coisa que até hoje não consegui fazer). E numa noite, entrei no escritório que tenho em casa, me sentei em minha mesa de desenho e comecei a rabiscar a charge que o Ronald tanto havia me pedido. De início, após me lembrar da história de vida daquele garotinho de uns 16 anos, me veio a ideia de não o retratar como fizeram outros cartunistas. Não sei se por medo de magoar o retratado, ou se por acharem que não ficava legal, ou até mesmo por algum tipo de preconceito, nenhum cartunista havia desenhado o Ronald como ele realmente era, cadeirante. Todos os desenhos só retratavam o Ronald do peito para cima. Nenhum cartunista havia tido a coragem de retratá-lo sentado numa cadeira de rodas. Aquilo foi a primeira cosa que me saltou aos olhos. E eu resolvi desafiar essa visão preconceituosa.
Como o Ronald me contou que seu maior sonho era se tornar um jornalista e que amava esportes, foi dessa forma que eu resolvi desenhá-lo. E após desenferrujar minha mão e minha coordenação motora, vi que a ideia do desenho começou a fluir muito bem de minha imaginação para a ponta do lápis. E assim nasceu a charge no papel. Imaginei Ronald, um incansável inquieto, em sua cadeira de rodas transformada num Fórmula 1; ele, de terno e gravata como bom apresentador de telejornais, feliz, segurando um microfone da maior emissora de TV do país e fazendo embaixadinhas.
Mas eu não fiquei satisfeito. Algo estava faltando, e eu sabia o que era. E sabia também que iria dar muito trabalho: fazer a colorização no computador. Eu amo computação gráfica, mas meu notebook da época já era velhinho e fazer qualquer trabalho no Photoshop exigia muitas horas de trabalho e de paciência devido à lentidão. Some a isso a minha característica de ser perfeccionista demais com as coisas que desenvolvo. Olhei para aquele papel, respirei fundo e falei “seja o que Deus quiser”. E após vários dias e noites, a charge ficou pronta.
De cara, eu adorei! Mas será que o Ronald gostaria? Será que eu não havia ido longe demais ao retratá-lo sem me esquecer da cadeira de rodas, sua companheira? Será que ele ficaria ofendido? Todas essas questões vieram à minha mente. Porém, pensei bem e com decisão firme concluí que tudo aquilo que eu vi no garoto e que retratei fazia parte da essência de quem Ronald Capita era.
Já havia passado muito tempo quando eu finalizei a arte. Era precisamente 25 de novembro de 2014. O Ronald já havia até esquecido o pedido que tinha feito para mim. Provavelmente, ele fez o pedido já esperando que não seria atendido mesmo. Então, chamei o Ronald pelo Twitter e perguntei qual era o e-mail dele. Ressabiado e desconfiado, ele me passou. E eu enviei o arquivo da charge para ele.
Após algum tempo de espera, a reação do Ronald foi espetacular. Ele me respondeu emocionado e muito feliz. E ainda me perguntou quanto era. Falei que não custava nada, pois era meu presente de Natal para ele. E que aquela charge o incentivasse ainda mais a seguir em frente com todos os seus sonhos, principalmente o de ser jornalista.
(Uma curiosidade: anos depois, a charge que criei para o Ronald virou tatuagem no braço do jogador Alemão. Quando era jogador do Internacional/RS, Alemão resolveu homenagear Ronald, um de seus melhores amigos, e escolheu o desenho para fazer a surpresa).
Desde então, a minha amizade com o Ronald passou a ser cada vez maior. Conhecer a história, os sonhos e as lutas daquele garoto me fazia entender o quão preciosa é a vida e que vale muito a pena lutar por ela.
Ronald queria ser jornalista (ele, de fato, já era excelente jornalista, mas não sabia!). Seu grande sonho era cursar uma faculdade de Jornalismo, estar entre pessoas dessa área, ir atrás da notícia e apresentá-la ao público. Desde quando o conheci, seu texto já era primoroso e trazia uma carga de personalidade que poucas vezes vi, salvo em grandes jornalistas famosos e consagrados. Mas ele era apenas um garoto de 16 anos, estudante de escola pública, que muitas vezes era obrigado a se ausentar de aulas devido à constantes pioras de sua condição física e que, talvez por isso, chegou a sofrer pesado bullying de outros estudantes e até de professores.
O bullying sofrido, aliás, foi algo que realmente marcou demais a alma do Ronald e ainda o machucava quando se lembrava daquelas atitudes lamentáveis. Quando começou a escrever de forma mais profissional, em um tempo em que trabalhou como colaborador num site esportivo, também enfrentou zombaria de três pessoas que lá colaboravam. Hoje, duas delas atuam em grandes veículos de imprensa; eu simplesmente espero que ambas tenha evoluído como seres humanos.
Foram inúmeras as lutas travadas na curta vida do Capita. Várias vezes ele chegou a ser desenganado, mas sempre conseguia dar a volta por cima e vencer. E tudo isso fazia dele uma pessoa com um coração gigantesco, corajoso e guerreiro, sempre pronto a vencer desafios. E tudo se transformava em aprendizado. E de cada aprendizado, surgia um ensinamento. Certa vez, ele me escreveu no WhatsApp:
“Já que Deus me deu a missão de impactar as pessoas sendo eficiente, o que para muitos ainda é sinônimo de coitadinho, cabe a mim fazer disso um estilo de vida e mostrar o contrário para essas pessoas. Por mim e por quem vive o que eu vivo”.
O Ronald criou vários projetos, mesmo com todas as dificuldades: campanhas pela acessibilidade nos estádios, projetos para criar oportunidades de estágio para estudantes de jornalismo, projetos de inclusão social de PCD’s e, principalmente e o mais importante, o “Eficientes”. Com o Eficientes, ele queria justamente afastar a ideia de “coitadismo” que a sociedade tem quando o assunto é pessoa com deficiência.
“Os deficientes são tão eficientes como qualquer pessoa e são capazes de coisas espetaculares”.
Levar essa mensagem/e fazê-la acontecer de fato na sociedade era a principal missão do Ronald.
Infelizmente, hoje, 28/11/2019, ele partiu. Porém, passou a nós o bastão de levar sua luta e sua missão a todos os lugares. Seu maior chamamento é o fato de que ele, numa cadeira de rodas ou deitado numa cama quando quase já não mais conseguia respirar e as dores o consumiam, nunca deixou de se movimentar para que o mundo fosse mais justo, para que as pessoas dessem mais valor à vida e para que o dEficiente fosse respeitado.
E você aí, que pode se movimentar à vontade, andar, correr, saltar de paraquedas, nadar, respirar fundo e fazer o que quiser? Vai ficar parado? Nós temos um mundo melhor a construir; um mundo sonhado pelo Ronald. Aceita pegar esse bastão e fazer juntos um mundo melhor e mais justo?
Ronald, meu amigo e irmão… descanse em paz junto de Deus. Você é ETERNO!
Por Ricardo Inforzato (Twitter @r_inforzato)
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